Genocídio em Ruanda

02/02/2025

Por Patrik Roger Pinheiro

O genocídio de Ruanda, também chamado de genocídio tútsi, foi o extermínio em massa de tútsis, tuás e hútus moderados em Ruanda. O massacre ocorreu entre 7 de abril e 15 de julho de 1994, durante a Guerra Civil daquele país. Este artigo, que abordará o genocídio está dividido em três partes:
1) precedentes, 2) o genocídio em si e 3) o pós-genocídio.

Informações Precedentes

A Ruanda é um país geograficamente pequeno, localizado na região dos grandes lagos, na África. Os povos que ali vivem são divididos em Hutus, tútsis e twas. Historiadores tem respostas diferentes para as origens desses povos, mas uma vertente afirma que os primeiros moradores que se tem notícia eram os twas (ou tuás), que descendiam dos pigmeus.

Os Bantus, povos que saíram das proximidades do atual Camarões e dominaram a porção meridional da África, chegaram na região da Ruanda, onde são chamados de hutus.

A terceira etnia, os tutsis, talvez tenham origem nos cusitas, originários de uma região ao sul do Egito. Eles chegaram mais tarde, provavelmente no século 17, e dominaram os hutus, que eram maioria. Os tútsis montaram um sistema de monarquia feudal, no qual eles mesmos eram pecuaristas e ocupavam as mais altas posições, e os hutus eram agricultores e ocupavam situações de campesinato.

Afirma-se que John Speke, em uma expedição para achar a nascente do rio Nilo, teria comparado hutus e tútsis a Caim e Abel, já que Caim era agricultor como os hutus, e Abel criava gado como os tútsis, que pareciam os mais bem sucedidos dos dois grupos. Esse paralelo encontrou eco nas missões católicas, que não deixavam de ensinar a alegoria em Ruanda, enaltecendo os tútsis.

O imperialismo europeu desembarcou na região em 1880, quando a Alemanha passou a dominar a Ruanda e o Burundi. Mas os alemães não queriam desperdiçar muitos recursos para governar o local, e usaram a estrutura social e política já montada, o que mantinha os tútsis na camada mais alta da sociedade, e os hutus continuavam nas camadas inferiores.

Com a derrota alemã na primeira guerra mundial, a Liga das Nações deu o mandato da região para a Bélgica, que passou a governar Ruanda de forma mais direta, mas ainda continuou a manter os tútsis nas camadas mais altas da sociedade ruandesa. Em 1935, a Bélgica chegou a introduzir carteiras de identidade que rotulavam as pessoas como tuás, tútsis ou hutus, o que segregava definitivamente os ruandeses e teria sérias consequências no genocídio de 1994.

Mas os ecos da independência que se espalhavam pelo continente africano chegaram à Ruanda, e os tútsis desejavam poder voltar a governar o país com sua monarquia independente dos europeus, como era no período pré-colonial. 

Só que para os hutus não fazia sentido conquistar a liberdade para continuar servindo aos tútsis. A monarquia tútsi parecia ser nada mais do que a continuidade da opressão que vigorava no período colonial. Era hora de uma libertação completa, pensavam os hutus. Em 1959, uma revolução hutu já levava milhares e milhares de tútsis a fugir do país e em 1962 veio a independência. Os exilados tútsis passaram a se organizar militarmente e atacar de países vizinhos, e os hutus, como resposta, realizavam massacres aos tútsis que permaneciam na Ruanda.

Juvénal Habyarimana
Juvénal Habyarimana

Em 1973, Juvénal Habyarimana deu um golpe de estado e tomou o controle do país. Em 1990 o exército tútsi invadiu o norte da Ruanda e o presidente Juvenal, que não conseguiu expulsá-los, foi perdendo autoridade até que por fim se viu forçado a assinar um acordo, em 1993, que levou a um cessar-fogo entre hutus e tútsis. Cessar-fogo esse que terminou em 6 de abril de 1994, quando seu avião foi derrubado e Juvenal, o presidente hutu, foi morto. Começava o terrível genocídio de Ruanda de 1994.

O Genocídio

Diante do caldeirão de antagonismos políticos e étnicos, os hutus culparam tútsis pela queda do avião que matou o presidente hutu de Ruanda, o que desencadeou a violência. Do início de abril a meados de julho de 1994, pessoas da etnia majoritária hutu desse pequeno país da África Central, sistematicamente assassinaram membros da minoria tútsi. 

Durante o genocídio, os tútsis eram arrancados dos seus lares e mortos a golpes de facão e instrumentos cortantes. No ardor da selvageria, hutus matavam covardemente tútsis homens, mulheres e crianças, além de ceifar as vidas de hutus considerados moderados... os que não apoiavam essa loucura!

Enquanto muitas pessoas lutavam por suas vidas, nós aqui no Brasil sabíamos o pouco que os jornais informavam, muitas vezes em breves notas em alguma coluna secundária e as potências européias e americanas abandonavam todos à própria sorte. Por exemplo, o Jornal do Commercio, do RJ, na edição de 9 de abril de 1994, informava que os belgas estavam planejando a retirada com segurança de seus próprios cidadãos e estavam tomando medidas para garantir a segurança dos seus. A mesma edição falava em retirada coordenada com outros países europeus, como a França e os EUA enquanto informava que as mortes de civis já chegavam às centenas.

Depois o jornal fala da perda de 10 soldados da ONU, algo mostrado no filme Hotel Ruanda. No domingo, 10 de abril, o já citado Jornal do Commercio informava da chegada dos fuzileiros americanos. Mas eles não vinham defender civil ruandês nenhum, apenas retirar os seus conterrâneos. Enquanto isso, o terror continuava imperando no país africano, enquanto famílias, dia após dia, semana após semana, eram mortas a golpes de facão.

Crânios das vítimas expostos no memorial Nyamata. O Memorial foi uma igreja onde cerca de dez mil pessoas foram assassinadas.
Crânios das vítimas expostos no memorial Nyamata. O Memorial foi uma igreja onde cerca de dez mil pessoas foram assassinadas.

Nem as igrejas foram poupadas. Costumeiros refúgios de barbáries anteriores, como o pedido de asilo chamado de santuário, duas igrejas são exemplo da selvageria que se apoderou de Ruanda. Numa igreja contabilizou-se 5000 assassinatos. Os bancos de cimento da igrejinha estão ocupados por roupas e objetos das vítimas, como os infames cartões de identidade. Noutra igreja, transformada em memorial, 10 mil que ali buscaram proteção foram mortos. Como num evento ocorrido dois anos antes ela havia cumprido seu papel de proteção, então pareceu óbvio para os que buscavam segurança, refugiar-se ali.

A 160 quilômetros da capital Kigali, em Murambi, 60 mil tútsis foram incentivados a buscar proteção numa escola em construção, segundo consta, por incentivo das autoridades. As mesmas autoridades que mais tarde cortaram a água e a comida do local.

Um artigo da Folha de São Paulo, intitulado "Memoriais trazem à tona atrocidades de genocídio de Ruanda", conta que numa escola uma mancha preta ainda denunciava o lugar onde batiam a cabeça das crianças contra a parede. Imagine o pavor de um pequeno inocente, em saber seu breve futuro, e a dor física de ser morto de maneira tão cruel.

Um dos fatos mais questionados nesse período foi a inércia das potências militares. Na edição de 15 de julho, portanto já com 3 meses de selvageria, o Jornal do Commercio traz um artigo do jornalista Edoardo Pacelli, onde ele se pergunta porque os intelectuais do mundo não estavam se manifestando e porque a mídia brasileira estava tão calada.

Mas sempre no meio do caos e do pior que a humanidade tem a oferecer, sempre emerge também a parte bela do que é um ser humano. Recomendamos aqui o filme Hotel Ruanda, que mostra como mais de 1200 tútsis foram salvos por um hutu, que buscou salvar sua esposa Tútsi e sua família, e no final, acabou enchendo de refugiados um hotel onde era gerente.

Temos também os casos de Testemunhas de Jeová que costumeiramente não apóiam nenhum lado em disputas políticas. Casos como o de Gahizi, um homem hutu que deu guarida a duas mulheres tútsis de sua religião, apesar dos protestos dos vizinhos. Gahizi pagou sua proteção com a vida, já que os soldados da milícia hutu o mataram a tiros quando souberam o que ele fez. Charles, outro hutu, decidiu proteger e ajudar tútsis a atravessar barreiras nas estradas. Quando foi descoberto, também pagou sua bondade com a própria vida.

O Número mais difundido de mortes chega à casa de um milhão. É um número questionado por alguns, que dizem que foi ampliado por motivos políticos. Se foi tanto ou não, isso claro não muda o sofrimento de quem foi mutilado ou perdeu parentes, mortos brutalmente por instrumentos cortantes.

Com o passar das semanas, a Força Patriótica Ruandesa, um grupo militar formado por tútsis, passou a gradativamente controlar muitas partes de Ruanda. Infelizmente, em muitos casos os abusos se inverteram, os civis hutus passaram a ser alvo de vingança.

Desdobramentos Pós-Genocídio

Primeira conseqüência do genocídio: Criação de campos de refugiados e guerra entre o Congo e Ruanda: Os hutus fugiram da FPR, que eram as forças tutsis, e formaram campos de refugiados nos países vizinhos, principalmente no Congo Belga, que na época se chamava Zaire. Os campos de refugiados levaram a uma crise, e milhares de pessoas morreram de doenças, como cólera e diarréia.

As tensões entre hutus e tutsis continuaram dentro do Congo, o que levou a duas guerras entre Congo e Ruanda, já que o presidente do Congo apoiava os hutus, em detrimentos dos tutsis.

Paul Kagame, em 2014
Paul Kagame, em 2014

Segunda conseqüência: Paul Kagame foi alçado ao comando da Ruanda: O comandante da milícia tutsi era Paul Kagame. As forças militares tútsis permitiram que Kagame tomasse o controle da Ruanda. Os números dos mortos hutus pela mão dos tútsis começou a ficar difícil de contar ou relatar, porque agora o governo era tútsi.

Paul Kagame passou a ser de facto o verdadeiro líder do país, mesmo que não ocupasse o posto de presidente. A partir do ano 2000, ele foi eleito presidente, tornando-se o líder do país de facto e de jure. As inúmeras suspeitas de fraude e irregularidades nas eleições que ele venceu, pairam sobre Kagame., mas ele preside a Ruanda até hoje (2025).

Embora esteja longe de ser unanimidade, Kagame tomou medidas importantes para o crescimento da economia destruída do país. Porém, os assuntos acerca do genocídio seguem sendo um tabu na mídia e nas escolas do país.

Uma terceira conseqüência do genocídio foram as críticas à comunidade internacional, que notoriamente tomou poucas medidas para prevenir o genocídio de Ruanda. Os americanos ainda tinham bem vivos na lembrança os problemas que sofreram na Somália, em parte abordados no filme Falcão Negro em Perigo.

A Bélgica, que havia facilitado a identificação dos tutsis ao inserir tal informação étnica nas carteiras de identidade, tinha soldados na Ruanda, em missão de paz. Mas a ONU não deu autorização para que os belgas interferissem ativamente no problema, dizendo que missões de paz não tem a missão de lutar.

Quanto a França, foi ela que treinou as forças hutus, que mais tarde criaram as milícias que saíram Ruanda afora causando o genocídio. E de forma geral, a comunidade internacional foi culpada de ficar de braços cruzados nesse período desesperador.

Por fim, uma quarta conseqüência do genocídio foi o colapso econômico e social que se seguiu a essa loucura: Sendo um país majoritariamente agrário e de economia frágil, Ruanda sentiu fortemente os efeitos. A infraestrutura do país colapsou e, com 40% da população morta ou refugiada.

O sistema jurídico continha os poucos juízes que lá ficaram e não tinham base para julgar devido à participação maciça de civis. O sistema penitenciário ficou completamente abarrotado. Os incontáveis estupros que ocorreram durante o genocídio geraram problemas sociais como a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Os próprios inocentes que eram gerados dessas relações acabavam sendo envolvidos em problemas sociais que eles mesmos não criaram.

Hoje, a Ruanda contém casos de perdão solicitado e concedido. Deve ser complicado perdoar o assassino de um familiar seu, mas muitos ruandeses entenderam que precisaram disso para prosseguir como um país unido.

Extras

Altar da Igreja de Ntarama, com buraco lateral.
Altar da Igreja de Ntarama, com buraco lateral.

IGREJA DE NTARAMA - ATUALMENTE UM MEMORIAL: Um dos memoriais do genocídio é o que foi a igreja de Ntarama. Durante o massacre, pessoas foram mortas nesta igreja pela polícia, soldados hutus e voluntários locais. Eles usaram granadas, lanças, porretes e facões. O governo responsável enviou depois os "esquadrões de limpeza" aos locais dos massacres para tentar esconder as evidências. Os corpos dos mortos seriam enterrados às pressas em valas comuns. As pessoas lá dentro, que tentaram escapar, foram mortas em campos próximos, enquanto a maioria foi morta dentro do prédio da igreja. Quando o governo mudou, eles decidiram não enterrar os corpos. Os ossos daqueles que morreram do lado de fora foram empilhados em mesas, mas os corpos daqueles que estavam lá dentro foram deixados onde foram assassinados. Por muitos anos após o massacre, os visitantes podiam sentir o cheiro da carne podre de dentro da igreja. Mas, em 1997, tudo o que restava eram os tristes restos dos corpos deixados após um massacre.

Na foto acima você há um buraco aberto ao lado do púlpito. O mesmo buraco pode ser observado pelo google maps, quando apontado para o memorial. Clique aqui e aponte o mapa para a direção sul, que você verá a parte de fora da igreja e o buraco no lado direito da foto.

Aqui há outra visão do memorial (clique).

FILME HOTEL RUANDA: Assista o filme Hotel Ruanda, ambientado nos acontecimentos do genocídio. O filme segue as ações de Paul Rusesabagina (Don Cheadle), que era gerente do hotel Milles Collines, localizado na capital do país. Contando apenas com sua coragem, Paul abrigou no hotel mais de 1200 pessoas durante o conflito. 

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